O novo romance de Isabel Allende nem o vento pode levar
- marlenerodriguessi
- 20 de jul. de 2023
- 3 min de leitura

Aviso: este texto contém spoilers.
Eu cresci numa casa sem livros. Mas sempre adorei lê-los. Quando era pequena, a biblioteca era um dos meus locais favoritos. Como me sentia importante, com o meu cartão de leitora; poder ler o que quisesse... Não demorei a ter os meus favoritos!
Já na adolescência, apaixonei-me pelo realismo mágico dos autores latino-americanos, sobretudo por Gabriel García Márquez e Isabel Allende. Desta última, li todos os livros, sem exceção. Com ela, aprendi que tão preciosos são os sorrisos, como as lágrimas, porque tudo é vida e viver é um privilégio. Com ela aprendi também que ser feminista não é falar mal dos homens, mas sobretudo gostar da condição de ser mulher e defendê-la.
Embora, os meus livros favoritos de Isabel Allende sejam os de quando era mais jovem, quando o Chile ainda estava tão presente na sua obra, quando a sua vida e as pessoas que amava, depois de passarem pelo crivo da sua imaginação e da sua sensibilidade, degeneravam em personagens ficcionadas inesquecíveis. Porque Isabel tem algo que é raro, que é a capacidade de ouvir, de observar, de perscrutar para além da primeira impressão e de encontrar a beleza tanto nas qualidades como nos defeitos humanos.
Este fim de semana, inundei-me de Allende. Além de terminar o mais recente romance "O Vento conhece o meu nome", assisti à série sobre a sua vida até à morte de Paula, a maior tragédia com que um pai pode sonhar. Aliás, quantas vezes já tinha pensado: "como é que não fazem um filme sobre a vida desta mulher?", ela própria dona de uma vida intensa.
Em "O Vento conhece o meu nome", Isabel Allende volta a ter um protagonista masculino, Samuel, o que, como sabemos, é raro na sua obra. Praticamente todas as suas protagonistas são grandes mulheres. Mas Samuel é só coprotagonista numa história que parte das maiores atrocidades que o Homem tem vindo a cometer na História - o Holocausto, os conflitos armados que assolam a América Central, a crise de migrantes na fronteira dos Estados Unidos com o México e a separação das famílias -, para nos trazer esperança nesse mesmo Homem.
Samuel, criança judia austríaca, separado dos pais após a Noite de Cristal. Letícia, criança salvadorenha que, só por um feliz acaso, não foi morta no massacre que reduziu a cinzas a sua família, a sua aldeia e tudo o que ela conhecia. Muitos anos depois, Samuel e Letícia reencontram-se, ambos como emigrantes nos Estados Unidos, ele patrão a viver os seus últimos anos de vida, ela empregada, mulher de armas e íntegra. Veem-se os dois isolados por uma pandemia num casarão decrépito e já sem vida, onde Samuel vai perdendo a vontade de viver e Letícia tenta encontrar um sentido na história fantástica da antiga patroa, que vai descobrindo no sótão.
Nessa mesma altura, Selena e Frank, uma assistente social e o advogado que ela convence a aceitar o caso, tentam salvar Anita, uma criança salvadorenha especial que foi separada da mãe após cruzar a fronteira dos Estados Unidos. O casal tudo faz para encontrar a mãe desta menina que é obrigada a passar por instituições, lares de acolhimento e vários géneros de violência que só vêm adensar a já sua triste história.
Tudo muda quando Anita encontra Samuel e Letícia. E a esperança ganha forma no amor tangível que une os três. Todos eles sobreviventes, todos eles vencedores porque nunca deixaram o ódio e a revolta dominarem as suas vidas, mesmo tendo sido vítimas da violência e do ódio de outros.
Em "O Vento conhece o meu nome", Isabel Allende põe a nu que o Homem nunca aprende, comete sempre os mesmos erros, é tão atraído para o abismo como continua a ser a casa do ódio, da incompreensão, da intolerância. Que todos os que não fazemos nada, todos os que não somos como Selena e Frank, estamos a contribuir para isso. E que a esperança reside no mesmo Homem que mata, porque só ele tem uma incapacidade infinita para amar...
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