Em casa em que não há pão, todos ralham e ninguém tem razão
- marlenerodriguessi
- 28 de abr. de 2023
- 3 min de leitura

Escondido pela folhagem, numa floresta tropical da Amazónia, o formigueiro fervilhava de atividade, embora fosse ainda de madrugada. As obreiras atarefavam-se a guardar alimentos... Trabalho era mesmo coisa que não lhes faltava. Tanto que nem tinham tempo de tomar conta das crias. Não fossem os intercomunicadores com vídeo que as deixava ver como estavam os mais pequenos, estes ficariam quase abandonados...
A rainha que não nos ouça, mas sem as obreiras não existiria formigueiro... Nem formigas!
Àquela hora, a sua majestade era informada da agenda enquanto tomava um pomposo pequena almoço. Há meses que planeava mandar reformar o formigueiro, ainda que estivessem numa grande crise. O calor excessivo da última estação, secara muito do alimento e não sabiam como iam aguentar as chuvas. A verdade é que a crise não preocupava a rainha nem um bocadinho; estava prestes a abandonar funções e pretendia marcar o seu reinado com uma obra importante.
Para esse dia, estava marcada uma reunião com os arquitetos e engenheiros que trabalhavam no projeto. Entre eles, encontrava-se Jonas, um arquiteto novato, nascido e criado no formigueiro.
O Jonas sentia-se invisível nesta enorme família. Eram todos irmãos, filhos da mesma mãe, a rainha, mas todos tratados de forma diferente. Sempre se esforçou por ser um bom aluno, porque não queria ser obreiro nem operário. Acabou por se tornar arquiteto. Não porque gostasse de desenhar, mas para chamar a atenção da mãe.
Jonas estudava há muito as obras que ia sugerir para o formigueiro. Queria criar espaços de que não houvesse notícia em todo o mundo das formigas. Os aposentos da rainha seriam ampliados e melhorados com a criação de um Spa, a construção de uma sauna e de uma discoteca. Seria criado um skate park e uma piscina com ondas artificiais para que as formigas praticassem surf.
Chegou o momento da reunião. Vários arquitetos mostraram os seus desenhos e por todos eles a rainha se mostrou encantada. Porém, nenhum despertou tanto o seu interesse como o de Jonas. Este pensou ter finalmente conquistado a mãe...
Se as outras formigas já não gostavam muito do jovem arquiteto, com o início das obras passaram a detestá-lo.
— Olhem para ele com a mania! Agora que anda sempre debaixo da saia da rainha, acha-se importante...
— Bolas! Estamos em crise e eles só se preocupam com as obras...
— Podes crer! Como se nós tivéssemos tempo para praticar surf!?
As formigas obreiras estavam mesmo, mesmo chateadas com aquela rainha e com o seu filho preferido, que a seguia para todo o lado como um cãozinho. E elas a passar dificuldades!... Tinham a sua razão, não achas? E as primeiras chuvas vieram provar isso mesmo... As torrentes de água – sim, porque são assim as chuvas nesta parte do mundo – duraram imensos dias! Foram tão fortes que o formigueiro desmoronou e as formigas tiveram de aprender a fazer surf mesmo sem querer. E é se queriam manter-se à superfície das águas. Apanhavam uma lasca de madeira e lá iam elas... Iupiiiiiiiiiiiiiiiii!
Fome também não passaram, porque aproveitaram as frutas que com a força da chuva caíam das árvores.
Inconsoláveis ficaram, claro, a rainha e o Jonas, que viram a sua obra ir pela água abaixo... Literalmente! Ainda por cima, como não sabiam trabalhar, dependiam das outras formigas para se alimentarem.
Quando tudo voltou ao normal, as obreiras juntaram-se e decidiram que estava na hora de eleger uma outra rainha. Uma que estivesse mais preocupada com o bem-estar de todos. Marcaram um dia para as eleições e votaram na que lhes parecia mais adequada.
Sabes o que é que aconteceu a Jonas?
Esqueceu a arquitetura, de que não gostava, e foi dar aulas de surf às formiguinhas.
Ilustração: Raquel Balsa (https://www.behance.net/gallery/18028767/livro-A-conta-da-familia-On-Account-of-Family)
(Um dos contos inseridos em "À Conta da Família", Alphabetum Edições Literárias, 2014)
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